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O que é o fenômeno da desindustrialização e quais os impactos?


O engenheiro mecânico Nelson Gomes, de 36 anos, trabalhou na Troller (marca de jipes da Ford) por 10 anos, em Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Com o fechamento da fábrica, no fim de 2021, o cearense encontrou recolocação após seis meses, mas só em São Paulo e em Minas Gerais, no coração industrial do Brasil.

Gomes não está sozinho. “Para a gente que trabalha na área, ficou bastante difícil porque tinha praticamente a Troller. Quase todos os colegas que trabalharam comigo lá precisaram ir para fora [do País ou do Estado]”, relata. Ao todo, a empresa tinha 470 funcionários.


Mas o problema não surgiu no Ceará. Naquele mesmo ano, outras unidades da Ford foram encerradas em Camaçari (BA) e em Taubaté (SP), extinguindo 6 mil postos de trabalho. A partida da primeira montadora instalada em território nacional descortina um processo que ocorre há mais de três décadas: a desindustrialização brasileira.


Nos últimos três anos, a Mercedes Benz e a Audi também fecharam as portas em São Paulo e no Paraná, mas o mercado automobilístico não foi o único. No período, houve ainda a saída da japonesa Sony e a da farmacêutica Roche (Suíça).


Quando a desindustrialização começou?


Para entender esse fenômeno, é necessário fazer o caminho inverso e revisitar o histórico do setor, que só ganhou fôlego na segunda metade da década de 1950, durante o governo de Juscelino Kubitschek (presidente de 1956 a 1961), conforme explica Ricardo Eleutério, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor).


“Essa industrialização mais plena acontece 456 anos depois do início do nosso processo de formação econômica. Por isso, foi considerada tardia”, analisa.

A expansão do parque industrial seguiu até 1985, quando as atividades da transformação (que altera a matéria-prima em produto final ou intermediário) atingiram a maior participação do Produto Interno Bruto (PIB), totalizando fatia de 35,9%.


O pano de fundo desse avanço, acrescenta o economista, era a política desenvolvimentista, com fortes investimentos estatais. O Brasil deixara de ser apenas um exportador de produtos primários, como café e açúcar, para produzir automóveis, eletrodomésticos e transformar ferro.


Entretanto, esse “boom” ficou concentrado no Sudeste, puxando, inclusive, uma corrente migratória de nordestinos.


Nesse contexto, o Ceará ficou ainda mais atrasado, segundo o professor da Universidade Estadual (Uece) e assessor econômico da Federação das Indústrias do Estado (Fiec), Lauro Chaves Neto.


“O processo cearense foi retardado em relação ao do Brasil, principalmente do eixo Rio-São Paulo. Nós tivemos, a partir do primeiro governo Virgílio e, na década 1980 em diante, um esforço maior”, contextualiza.


Virgílio de Morais Fernandes Távora (1919-1988), que foi governador duas vezes (1963 a 1966 e 1979 a 1982), também apostava na industrialização para o desenvolvimento regional. Durante o governo dele, foi erguido o primeiro distrito industrial cearense, em Maracanaú, em 1966 .


Depois, ao longo dos anos, foram criados outros três polos fabris no entorno. Atualmente, são 151 fábricas, totalizando 27,3 mil trabalhadores, segundo o município. O Ceará também tem os distritos industriais do Cariri e de Jaguaribe.


Décadas depois, em 2002, foi inaugurado o Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP), importante para a logística das manufaturas. A estrutura abriga 30 negócios. Destes, 20 são das indústrias cimenteira, metalúrgicas e de energia, incluindo as renováveis


São 50,8 mil empregos, entre diretos e indiretos. Além do setor fabril, o número abrange a Zona de Processamento de Exportação (ZPE) e o porto.


Apesar dessa ambiência, o Ceará amarga baixa representatividade no segmento da transformação, com apenas 1,6% das indústrias instaladas no País (13.623 negócios), conforme dados de 2020. Os líderes são: São Paulo (37,3%) e Minas Gerais (10,8%).


Estados onde o engenheiro Nelson Gomes, citado no início desta reportagem, avistou as portas do mercado abertas após a demissão da Troller. “Eu gosto muito daqui e não queria ir embora, mas o tempo foi passando e, depois de quase seis meses, não encontrei nada. Então, aceitei uma proposta de São Paulo”, lembra.


Após três meses na capital paulista, apareceu uma oportunidade no modelo remoto, em Minas Gerais, permitindo o profissional voltar para o Ceará, mas o conhecimento deixa lá fora.


Quais as causas da desindustrialização?

Na segunda metade dos anos 1980, o peso da indústria da transformação sobre o PIB brasileiro começou a declinar, até chegar no patamar atual, de apenas 11,3%, em 2021. Também impactado pela pandemia de Covid-19, o setor registrou o menor percentual desde 1947.


Em contrapartida, o agronegócio – bandeira do presidente Jair Bolsonaro (PL) – assumiu protagonismo (27%). Mas por que houve retrocesso nesse aspecto? Por muito tempo, a discussão ficou em torno do chamado “custo Brasil”, mas a questão é mais complexa.


Para o professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Feldmann, a abertura das importações sem uma estratégia industrial, implementada pelo então presidente Fernando Collor (entre 1990 e 1992), foi a principal razão.


A mudança, segundo o economista, favoreceu as companhias americanas e asiáticas, mas enfraqueceu o mercado local.

“Outros países só abriram os setores dos quais poderiam competir em pé de igualdade. Um exemplo famoso é o Japão, um dos maiores produtores de computadores do mundo. Durante 30 anos, uma das principais fabricantes dos Estados Unidos foi proibida de vender lá”, exemplifica.


“O Japão esperou suas fábricas se consolidarem e, aí sim, abriu para essa empresa. O que cada país faz é definir uma política de proteção. Nós éramos um dos maiores produtores do setor têxtil mundial e de calçados. Hoje, praticamente não exportamos esses itens", compara.

Feldmann enumera outros potenciais desperdiçados, como toalhas, autopeças, freios e amortecedores automotivos.


O que perdemos com a desindustrialização?


Paulo Feldmann frisa que “todos os países desenvolvidos têm indústrias de transformação poderosas". Com essas atividades mais fortes, amplia-se a pauta das exportações, além da massiva geração de emprego de valor agregado e rendas mais elevadas.


Outro ponto, acrescenta, é que o preço dos produtos agrícolas (atual carro-chefe brasileiro) é definido pelo comércio internacional. No caso da manufatura, todavia, há um maior controle interno.


“Os países atrasados não têm indústrias manufaturadas. A África, por exemplo, é muito pobre e só tem commodities. Será que esse é o novo futuro do Brasil? Ficar produzindo soja, minério de ferro, ou queremos produzir produtos tecnológicos em que a inovação é importante e gere bons empregos?”, questiona. PAULO FELDMANN professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

O que pode ser feito para reverter a situação?


O cenário expõe a necessidade de conquistar espaço industrial e galgar para a inserção na indústria 4.0 para o Brasil não ser desclassificado do comércio internacional nos próximos anos.


O professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, Paulo Feldmann, acredita que o primeiro passo, independentemente do governo que assumir em 2023, é a elaboração de uma política industrial, algo que não foi priorizado nas gestões dos últimos 30 anos.

A partir daí, estabelece-se um projeto estratégico para identificar as vocações brasileiras e em quais áreas há condições de competição para estimulá-las com empréstimos de bancos públicos, incentivos fiscais, infraestrutura, tecnologia, formação de recursos humanos e ações protecionistas.

“Esse plano precisa ser feito agora. Por exemplo, a gente não sabe fabricar robô, é uma indústria sofisticada para nós, então, abrimos para empresas de fora, mas tem outras que o Brasil tem tudo para ser ótimo fabricante, como equipamentos para energia solar, carros elétricos e um grande potencial ambiental”, lista.


E quais os caminhos para o Ceará?


O professor da Universidade Estadual (Uece) e assessor econômico da Federação das Indústrias do Estado (Fiec), Lauro Chaves Neto, explica que o desenvolvimento industrial cearense deve ser divido em dois eixos. O primeiro envolve as áreas têxtil, de mineração e metalmecânica.


“Essa indústria tradicional cearense está num processo de transformação digital e de busca de melhoria de competitividade, com uma participação significativa do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), parcerias com universidades e com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequena (Sebrae)”, afirmou.


“Todos juntos em busca da melhoria da competitividade desses setores adicionais que, em termos econômicos, sai a parte mais significativa da indústria cearense”, observa.


Já o segundo eixo, enumera, abrange as fontes renováveis, como energia solar, eólica, hidrogênio verde e segmentos ligados à economia do mar”.


“Elas podem colocar o Ceará em posições de destaque não só nacional, mas destaque internacional. E trazem uma série de oportunidades para toda a cadeia produtiva relacionada às energias renováveis”, avalia.


O que o Ceará já tem feito?


Segundo a Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Estado (Sedet), para atender aos segmentos de bens duráveis e não duráveis (alimentos, química, metalúrgica, pesca etc) houve uma atualização do Fundo de Desenvolvimento Industrial (FDI) para conceder incentivos fiscais.


"Por se tratar de uma ferramenta de fomento instituída ao final dos anos 1970,o FDI sofreu reformulação em janeiro de 2022, incorporando aos benefícios ofertados às empresas incentivos relacionados à geração própria de energia elétrica, reuso de água, indústria 4.0, responsabilidade e sustentabilidade social e ambiental, por meio de pontuações que incrementam estes benefícios fiscais no momento da implantação da indústria", diz, em nota.


A pasta informou que, para os empreendimentos especiais, como refinaria, hidrogênio verde e geradoras de energia elétrica a partir de gás, são assinados Memorando de Entendimento (MoU - Memorandum of Understanding) para viabilizar a negociação para a instalação dessas grandes empresas no Estado.


A Sedet também afirmou haver investimentos em infraestrutura rodoviária, portuária, aeroportuária e elétrica.


"Esse conjunto de políticas tem permitido que o Ceará diversifique sua matriz produtiva e atraia tanto empresas intensivas em mão de obra quanto empresas intensivas em tecnologia e valor agregado, interiorizando inclusive muitas dessas indústrias, gerando emprego e renda não apenas na Capital e Região Metropolitana como também promovendo a desconcentração industrial do Estado", enfatiza.


No projeto Ceará 2050, também há um plano voltado para estimular os clusters produtivos, incluindo a indústria cearense.


Fonte:diariodonordeste

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