O Brasil já arrecadou mais de R$ 5 bilhões para o combate à pandemia e seus efeitos, mas o número histórico pode não significar que a cultura de doação esteja fortalecida
Durante a pandemia, a atuação do terceiro setor ficou ainda mais evidente. Instituições e projetos sociais estão sendo responsáveis pela realização de um trabalho essencial à sobrevivência de milhões de pessoas que vivem em condições vulneráveis e sofrem com a falta de apoio do poder público.
Para contabilizar as doações feitas neste momento, a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) criou o Monitor de Doações no final do mês de março. A ferramenta foi desenvolvida quando a equipe percebeu que muitas ações estavam sendo anunciadas para combater a pandemia no país. “Nós queríamos ter uma ideia do que isso representava em volume, o tamanho da generosidade”, diz João Paulo Vergueiro, diretor executivo da ABCR.
As doações contabilizadas não são voltadas somente ao combate do coronavírus no país, mas são anunciadas neste contexto de pandemia.
“Existem muitas campanhas que a gente está monitorando de combate à pobreza, de apoio às comunidades indígenas ou quilombolas, de preservação do meio ambiente. Não são campanhas específicas dirigidas para o coronavírus, mas sim campanhas para promover organizações ou causas que estão sendo indiretamente impactadas pela crise”, explica Vergueiro.
Até o momento, o Monitor já registrou mais de R$ 5,6 bilhões doados no contexto de pandemia, um valor histórico para o país. “Nós nunca tivemos tanta doação realizada em tão pouco tempo para uma única causa no Brasil. Isso é inédito”, comenta o diretor.
O aumento das doações em momentos de crise, no entanto, não é uma característica somente do brasileiro. Vergueiro explica que é natural que, em contextos de urgência, as pessoas se solidarizem muito mais em comparação com cenários normais.
“Esse é um movimento observado em qualquer lugar do mundo, em qualquer momento que tem uma crise humanitária ou uma crise de saúde pública. O nosso desafio é fazer com que essa doação seja permanente”, destaca.
Para ele, o momento de pandemia está contribuindo para que a cultura de doação se fortaleça no Brasil, principalmente porque muita gente que nunca havia doado começou a criar o hábito agora.
Por outro lado, o diretor da ABCR diz que o fortalecimento dessa cultura no país não depende somente da pandemia. “É importante também que as organizações continuem pedindo doações, que quem fez as campanhas agradeça aos doadores, que a imprensa continue falando sobre a doação”, ressalta.
O BRASIL É SOLIDÁRIO?
Segundo o World Giving Index 2019, o Brasil ocupa o 74º lugar no ranking geral, entre 126 países. O levantamento é conhecido como o ranking global de solidariedade e registra quantas pessoas, no mês anterior à consulta, doaram dinheiro para uma organização da sociedade civil, ajudaram um estranho ou fizeram trabalho voluntário.
“Se por um lado o índice diz isso, por outro a gente viu, frente à pandemia, uma grande mobilização de ajuda”, diz Silvia Naccache, palestrante e consultora nas áreas de voluntariado, responsabilidade social, desenvolvimento sustentável e Terceiro Setor.
Para que a cultura de doação exista e se fortaleça no país, Silvia diz que devemos “educar para doar”, ou seja, fazer com que essas doações se tornem um hábito.
Para isso, a especialista explica que as organizações precisam aprender a pedir as doações de forma objetiva e transparente. “Por que isso aumentou tanto na pandemia? Porque ficou muito claro para o que eram [as doações]. Eram para comprar cesta básica para aquela família que estava com fome, era para comprar as máscaras e os produtos de higiene. Quando existe essa clareza, as pessoas se sentem mais seguras em doar”, destaca.
Silvia comenta que, durante a pandemia, o voluntariado passou por fases. A primeira foi de medo, com a suspensão das atividades de várias organizações. Depois, houve uma conscientização e um aprendizado, momento em que as pessoas observaram de que forma poderiam contribuir para, posteriormente, agir.
“Acho que foi um momento de aprender que não é isso que vai parar o voluntariado. No fim, a solidariedade, a filantropia, a vontade de ajudar são ainda mais contagiosas que a Covid-19”, ressalta.
Apesar da adaptação que o momento de pandemia exige, Silvia acredita que a crise econômica vai impedir que o Brasil crie uma cultura de doação fortalecida. “Eu acredito que, obviamente, os recursos financeiros vão ficar mais escassos. A gente está enfrentando uma crise econômica que vai impactar também o bolso de quem doa”, finaliza a consultora, explicando que o trabalho das organizações na captação de recursos será ainda mais importante após a crise.
A IMPORTÂNCIA DA FILANTROPIA
“As pessoas não doam porque nós não pedimos. E, quando pedimos, nós não sabemos pedir”. Quem afirma isso é Custódio Pereira, presidente do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (FONIF), que acrescenta que essa é uma questão que ultrapassa as culturas, ou seja, organizações como um todo têm dificuldades em comunicar sobre as doações e campanhas que realizam.
Segundo Pereira, a divulgação fraca sobre o trabalho das instituições filantrópicas faz com que a sociedade não conheça a fundo a importância do setor, o que também dificulta que as doações sejam realizadas em maior número.
Uma pesquisa realizada pelo FONIF, divulgada no ano passado, mostra que o Brasil possui hoje 11.868 entidades filantrópicas em atuação nas áreas de Educação, Saúde e Assistência Social. O estudo teve como base dados dos ministérios e da Receita Federal.
O FONIF também analisou qual o retorno que as instituições filantrópicas dão à sociedade e concluiu que, para cada R$ 1 recebido em imunidade tributária, o setor retorna R$ 7 à população.
“É um investimento que a sociedade e o Estado fazem, e tem um elevadíssimo retorno em valor e um elevadíssimo retorno na qualidade, porque nós estamos em três áreas que são essenciais”, comenta Pereira, lembrando que tais instituições empregam hoje 2,3 milhões de pessoas no país.
Assim como Silvia, o presidente do FONIF também ressalta a importância da profissionalização do captador de recursos para o crescimento da área, ou seja, se não houver pessoas capacitadas para a área, o setor não vai avançar. “Eu acho que terminada a pandemia, a tendência é que volte a ser o que era”, observa.
Além disso, o presidente do FONIF diz que os incentivos fiscais são importantes e que políticas que promovam repasses fiscais às instituições filantrópicas também são necessárias para que o setor cresça e tenha capacidade de ampliar o atendimento à população.
“Nós vivemos num país que, assim como os outros, tem uma cultura normal de doar. Mas nós estamos atrás de outros países no que diz respeito a uma política que permita às instituições filantrópicas sérias receberem mais recursos para fazer o trabalho que já fazem”, diz.
Para incentivar a cultura de doação no Brasil, o FONIF apresentou ao Congresso a proposta de criação da ‘Lei Rouanet da Educação’, que consiste na concessão de incentivos fiscais a pessoas físicas e jurídicas que façam doações para promover a melhoria do ensino no Brasil.
“Nós entregamos [a proposta] para o ministro da Educação, falamos com senadores, deputados, mas a coisa não decolou. No Brasil, fala-se muito de Educação, mas efetivamente nós não estamos dando a motivação fiscal para doações”, finaliza.